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Conheça, também, o primeiro Aleateorias.

sábado, 17 de setembro de 2011

A CAIXINHA DE MÚSICA

Quando comecei a vida de blogueiro, demorei a perceber que poderia apresentar meus contos aos amigos. Dizem que quem escreve em casa, na privacidade de seu quarto ou coisa que o valha, faz questão de mostrar ao mundo o que escreve, enquanto quem escreve em lugares públicos faz exatamente o contrário. Sou mais o segundo caso, mas às vezes saio da casca.
No momento, estou trabalhando num conto novo (ou velho, já que estou trabalhando em cima do mesmo argumento há alguns anos) e não sei quando vou terminar. Enquanto isso, reapresento meu material mais antigo.
O conto que apresento a seguir já foi publicado no antigo Aleateorias e, de todo o material que escrevi ainda no colegial, é o melhor que consegui — na verdade, fiz a primeira versão dele no colegial e gastei um bocado de tempo re-escrevendo, até chegar à versão final anos mais tarde. Não é grande coisa para quem lê, mas certamente me diverti muito escrevendo.


Não achei os créditos da foto. Se alguém souber, por favor, me avise.

Era um dia de chuva, desses em que não há o que fazer, e Ângela estava sozinha no quarto, olhar fixo na janela, talvez observando pessoas e carros que passavam pela rua, talvez seguindo o caminho percorrido pelas gotas que se chocavam contra o vidro, ou talvez apenas contemplando a própria beleza refletida naquele espelho diáfano que a separava do resto do mundo. Ou talvez estivesse apenas olhando para lugar nenhum, o que parecia estar mais próximo da verdade. No rosto, um olhar distante e sem brilho, como se ela não estivesse ali, apenas uma casca vazia e sem vida.
Continuou assim por algum tempo, imóvel e calada, até que de seus finos lábios rosados saíram algumas palavras em leve tom de indignação:
— Odeio chuva... — e voltou ao silêncio.
De fato, ficar trancado em casa sem o que fazer ou com quem conversar não é o que a maioria das pessoas consideraria interessante, principalmente quando se sabe que fora dali o povo se ocupa e se diverte com as mais diversas atividades. Ângela não gostava de rádio ou televisão, menos ainda de jornais e revistas. Também não tinha amigos na cidade. A bem da verdade, não os tinha em lugar nenhum. Era uma menina solitária e amarga e queria continuar desse jeito.
Mas nem sempre fora assim. Dias de chuva como aquele sempre a faziam lembrar de como tudo tinha sido tão bom. E foi para fugir dessas lembranças que ela afastou o olhar da janela. Seus olhos percorreram cada detalhe do quarto até pousarem sobre um pequeno porta-retrato virado sobre a mesa.
Ângela hesitou um pouco, mas estava sozinha em casa e podia se permitir expressar os sentimentos, ao menos por alguns instantes. Pegou o porta-retrato e virou-o para que pudesse ver a foto. Lá estava ela, cinco anos mais nova, ao lado dos pais e dos irmãos, todos sorridentes, pois a pequena princesa completava dez anos. Ângela ainda se lembrava de cada momento da festa, das brincadeiras, dos doces, dos convidados, dos presentes... Havia um que era especial, propositadamente esquecido no fundo de uma das gavetas.
A garota, então, abriu a última gaveta do guarda-roupa e dela retirou um pequeno embrulho. O papel e a fita, já bem gastos, indicavam que o pacote fora feito e desfeito muitas vezes desde aquele aniversário. Com o mesmo cuidado de cinco anos atrás, Ângela desatou o laço e desdobrou o papel e, de dentro da pequena caixa de papelão colorido, retirou a caixinha de música que antes fora de sua mãe e, por um breve instante, sorriu.
Ainda se lembrava da alegria sentida no momento em que viu o presente que sua mãe lhe dera. Tantas vezes a vira cantando e dançando ao som daquela melodia suave, tantas vezes tentara segui-la em seus passos e notas... Aquela caixinha era seu maior desejo e agora era sua, como antes fora de sua mãe, da mãe de sua mãe e da mãe da mãe de sua mãe. Aos muitos sonhos de outras gerações depositados naquela caixinha, somavam-se agora os de Ângela.
Como se estivesse hipnotizada, a menina abriu a caixinha e a música encheu o quarto. Sorriu como sorrira na festa e como sorrira sempre que vira sua mãe cantando e dançando e a cada beijo de boa-noite que ela lhe dera. Sentia-se feliz e segura perto dela.
Voltou a olhar pela janela. As pessoas passavam sem saber que eram observadas. Ângela as via apressadas ou tranqüilas, sozinhas ou acompanhadas, e de cada uma tentava imaginar os sorrisos, as angústias, as paixões, os temores. O que não daria para ser parte de tudo aquilo outra vez? Queria gritar e mostrar ao mundo que ainda estava viva! Mas não havia quem a ouvisse naquela tarde. Estava completamente só.
Abriu a janela, mas não gritou. Simplesmente aproximou-se o máximo que pôde, abriu os braços, fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás como se esperasse pelo abraço de uma pessoa querida que não via há muito tempo. As cortinas agitadas pelo vento acariciavam a menina com suaves toques de renda branca perfumada, convidando-a a dançar, enquanto o vento fazia festa em seus longos cabelos castanhos e a chuva gentilmente cobria-lhe a face com dezenas de pequenos beijos molhados. A música tornava-se cada vez mais intensa e para Ângela parecia que o mundo girava à sua volta como se tivesse trocado de lugar com a pequena bailarina que dançava sobre a caixinha. Aquele momento de exaltação dos sentidos trazia-lhe ao coração a crescente sensação de... Nada. Vazio. Não era a mesma coisa. Não odiava, realmente, a chuva. Odiava não poder mais senti-la como antes.
Despertando do transe, Ângela fechou a janela. Estava molhada e com frio e a música já não a alegrava mais. Lembranças que, sem sucesso, se esforçara para apagar, agora voltavam muito mais fortes.
Era noite, chovia muito, e Ângela estava quase adormecida no banco de trás do carro. Segurava junto ao corpo o melhor presente de aniversário que já ganhara em toda a sua curta vida., sem tentar esconder a felicidade que tinha no coração. Os irmãos mais velhos dormiam ao seu lado e os pais conversavam alegremente sobre a festa. Ângela dormiu. Então, ouviu apenas o grito de sua mãe bruscamente interrompido e dores terríveis tomaram seu corpo. Uma grande confusão de luzes e sons formou-se ao seu redor e, então, tudo ficou escuro.
A escuridão durou vários dias. Vozes desconhecidas mas gentis falavam-lhe muitas coisas, mas pouco lhe diziam sobre sua família ou sobre o que era aquele lugar. Sentia dores fortes por todo o corpo, tentava mover-se sem resultado. Teve medo muitas vezes e o tempo todo sentiu-se só. A única companhia que tinha quando as vozes iam embora era a melodia que conhecia tão bem. Era sua única fonte de conforto.
Os dias seguintes foram difíceis. Mudando de casa em casa, vivendo com parentes que mal conhecia, tentando aprender a aceitar a dura verdade de que estava sozinha. Tornou-se amarga, calada, triste, em nada lembrava a menina alegre e cheia de vida que fora antes. O cuidado e a atenção de avós, tios e primos não compensavam o que ela perdera naquela noite.
Morava agora com uma tia que mal encontrava. A casa grande parecia ainda maior quando Ângela ficava sozinha, o que acontecia durante a maior parte do tempo. A menina até preferia a solidão dentro de casa. Ao menos assim, não precisava se esforçar para ser simpática. Podia ficar ali, de cara amarrada, de mal com a vida e com o mundo sem ninguém por perto para sentir pena dela ou recriminá-la por ter desistido tão facilmente de viver.
Lágrimas rolaram pelo rosto, ao mesmo tempo belo e sem vida. Ela não se esforçou para contê-las. A música continuava tocando e trazendo lembranças. Sentiu o coração encher-se de tristeza e alegria. Queria cantar e chorar, brincar e gritar. As lembranças continuavam a vir como uma tempestade que varre as praias, um espetáculo de rara beleza, mas de uma beleza aterradora, destruidora. A cada lembrança, uma lágrima. Sua mãe cantando e dançando, as brigas e brincadeiras com seus irmãos, as histórias contadas por seu pai, belas lembranças que só lhe traziam mais sofrimento.
A música tornou-se mais lenta até desaparecer. O quarto mergulhou outra vez no silêncio quebrado apenas pela chuva lá fora. Ângela fechou a caixinha, guardando novamente todos os sonhos de menina que ainda esperavam pelo dia em que se tornariam reais. A festa tinha terminado e Ângela jamais se esquecera disso nos últimos cinco anos. Não poderia.
Voltou-se novamente para a mesa e mais uma vez deixou o porta-retrato virado sobre ela. Refez o embrulho e o guardou de volta no fundo da gaveta. Depois, enxugou o rosto com um lenço de papel. Com a força que lhe restava nos braços, fez mover aquela fria cadeia que a prenderia por toda a vida e voltou a olhar pela janela. Sua cadeira de rodas seria sua única companhia no restante da tarde. A menina até poderia jurar tê-la ouvido, num sussurro frio e metálico, desejar-lhe um feliz aniversário, enquanto a chuva lá fora tornava-se mais forte.

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